segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

De Júlia Cortines



Última página

Antes de mergulhar no silêncio da morte,
ou da idade sentir a fraqueza e o torpor,
eu quisera lançar, num supremo transporte,
meu grito de revolta e meu grito de horror.

Mas sei que por mais forte e por mais estridente
que ela corra através do infinito, até vós,
ó céus, que além brilhais numa paz inclemente,
nem qual brando rumor chegará minha voz!

Mas sei que não há dor que a natureza vença,
e que nunca a fará de leve estremecer
na sua eternidade e sua indiferença
o lamento que vem dum transitório ser.

Mas sei que sobre a face execrável da terra,
onde cada alma sente, em torno, a solidão,
esse grito, que a dor duma existência encerra,
não irá ressoar em nenhum coração.

Contudo, num clamor de suprema energia,
eu quisera lançar minha voz! Mas a quem
enviar esse brado imenso de agonia,
se para o compreender não existe ninguém?!

(Vibrações, 1905)




Júlia Cortines (1868-1948) Nasceu em Rio Bonito (RJ) e morreu no Rio de Janeiro (RJ). Publicou apenas dois livros, Versos (1894) e Vibrações (1905).


sábado, 3 de outubro de 2015

De Donizete Galvão



Escoiceados

Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos 
um burro
cinza-malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos
bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.

(Ruminações, 2000)





Donizete Galvão (1955-2014) - Mineiro de Borda da Mata, estabeleceu-se em São Paulo como jornalista a partir de 1979. Em 1988 estreia com Azul navalha. Publicou outros seis livros de poemas, entre eles, A carne e o tempo (1997), Ruminações (2000) e O homem inacabado (2010).